Resenha: ‘Manas’ expõe a violência invisível com sensibilidade e brutalidade

Assistir ao filme Manas me trouxe diversos nós na garganta. É angustiante ver retratado na tela algo tão real, porém muitas vezes escondido: o abuso infantil, o tráfico internacional, a prostituição infantil e até mesmo o tráfico de órgãos. Mais doloroso ainda é perceber como, por fatores culturais, religiosos e pela ignorância humana, tudo isso é tratado como “normal” em algumas regiões do país.

Manas / Foto: Divulgação
Manas / Foto: Divulgação

Antes de falar sobre o filme em si, é importante contextualizar o leitor sobre o cenário retratado. Manas se passa na Ilha de Marajó, no Pará, descrita pelo Google como “a maior ilha fluviomarítima do planeta”, com mais de 3 mil ilhas. A região, cercada por rios e mangues, é uma das mais pobres do Brasil, com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país: apenas 0,418 numa escala que vai até 1.

Marajó, apesar de sua beleza natural e proximidade com Belém, capital do estado, enfrenta desafios estruturais imensos. Grande parte da população sobrevive da extração de açaí e da pesca de camarão, e o acesso à energia elétrica é limitado, geralmente por meio de geradores a diesel, conhecido na região como “ouro negro”.

O filme ganhou ainda mais relevância por dialogar diretamente com as denúncias feitas pela cantora gospel Aymeê, que em 2024, durante o programa Dom Reality, chocou o país ao denunciar, por meio da música, os abusos sexuais cometidos contra crianças na região. Em sua canção, ela canta: “Ah, enquanto isso, no Marajó, o João desapareceu esperando os ceifeiros da grande seara”, e menciona meninas de 3 a 13 anos se prostituindo por valores como R$ 5 ou R$ 10.

O mais alarmante: muitas dessas crianças têm a “permissão” dos próprios pais. O filme retrata essa realidade com fidelidade e coragem, revelando uma infância interrompida por um sistema que normaliza a violência como meio de sobrevivência.

Um retrato nu e cru da infância roubada

Em Manas, conhecemos Marcielle (interpretada com força e sensibilidade por Jamilli Correa), uma jovem de 13 anos que vive com seus pais, Marcílio (Rômulo Braga) e Danielle (Fátima Macedo), além de seus três irmãos, em uma casa simples sobre o mangue. O lar tem apenas um cômodo, uma cama, redes e pouco mais. A irmã mais velha, Claudinha, fugiu de casa após se envolver com um homem que passava pela região.

Marcielle vive com o desejo de tirar sua identidade. Para isso, usa documentos da irmã mais velha, mas é impedida de seguir com o processo pela escrivã, que exige a presença dos pais. A cena revela muito sobre a realidade de meninas como ela: sem acesso básico à documentação, sem autonomia, vivendo as margens da sociedade.

Nas escolas da região, a precariedade é evidente: materiais reutilizados, livros rasgados, cadernos preenchidos. Crianças de várias idades compartilham uma mesma aula e, por isso, páginas sobre educação sexual em livros de ciências são grampeadas para “proteger” os mais novos das imagens. O que parece uma tentativa de preservar a inocência, na verdade, omite informações fundamentais para meninas como Marcielle, que muitas vezes já têm vida sexual ativa, em muitos casos forçada, mas não sabem sequer reconhecer o abuso.

Uma violência sutil e sufocante

O filme é inteligente ao evitar mostrar o abuso de forma explícita. Não há cenas gráficas, mas o peso está nos silêncios, nas ausências, nas entrelinhas. Quando Marcielle passa a dormir na cama do pai, a ausência de clareza sobre o que realmente acontece é ainda mais angustiante. A cena da caça, onde Marcílio leva a filha sozinha para “caçar pacas”, carrega um simbolismo doloroso, e a palavra “paca” ganha um peso dramático importante no desenvolvimento da história.

Mesmo sabendo dos riscos, Marcielle sobe em balsas para vender camarão. Essa cena, que poderia soar inofensiva, é carregada de significados quando se entende que muitas vezes, nessas balsas, camarões são trocados por diesel e as meninas se prostituem em troca de qualquer quantia.

Marcielle tenta pedir ajuda. Diz à mãe que não quer mais dormir na cama do pai. A resposta é devastadora: “Tem coisas que a gente não pode fazer nada.” Em outra tentativa, conversa com uma moça de um comércio local que apenas responde: “Todo mundo passa por isso, logo passa.” O conformismo é institucionalizado.

Fé, ignorância e a manutenção da violência

Uma das cenas mais simbólicas ocorre na igreja. A pastora diz algo como: “Se tem um problema em casa, aceite, busque a fé para proteger aquilo que mais importa: a família.” A frase resume o pensamento de muitos: tudo pode ser perdoado ou ignorado em nome da fé. A religião se torna uma cortina que encobre a violência, que silencia as vítimas e dá ao agressor o manto da impunidade. Neste ponto, o filme retratou com fidelidade o que acontece na realidade.

Não é raro ver famílias em extrema pobreza com muitos filhos, sempre justificando com moral cristã escolhas que mantêm o ciclo de violência e abandono.

Manas / Foto: Divulgação
Manas / Foto: Divulgação

O impacto de uma lama podre e necessária

Sem dar spoilers, a cena final é poderosa. A lama podre, mencionada no início do filme como uma brincadeira do pai com as filhas, reaparece no clímax como elemento simbólico. Ela representa a podridão moral da casa, da figura paterna que deveria proteger, mas que é o próprio monstro. Representa a mãe omissa, que se esconde atrás da fé. Representa a casa construída sobre esse solo contaminado, onde o teto que deveria abrigar, aprisiona. No final a “podridrão” acaba engolindo o monstro.

Conclusão

O queManasfaz, assim como a música de Aymeê, é jogar luz sobre um Brasil invisível. Um Brasil que preferimos ignorar, onde a infância é roubada, onde a sobrevivência atropela a dignidade, e onde o silêncio é a regra. O filme exige do espectador mais do que empatia: exige ação, consciência e denúncia. Um soco no estômago necessário.

Nota: 4,5 de 5

Confira o trailer oficial

Sinopse

Manas apresenta a história de Marcielle (Jamilli Correa), uma jovem de apenas 13 anos inserida em um meio repleto de violências dentro da periferia onde mora. Moradora da Ilha de Marajó, no Pará, junto com o seu pai, Marcílio (Rômulo Braga), sua mãe, Danielle (Fátima Macedo), e três irmãos. A menina sofre com a perda da sua irmã mais velha Claudinha, que partiu para bem longe de onde moravam após arrumar um homem que circulava pela bacia hidrográfica que banha a região. Marcielle, agora mais experiente com a vida, começa a ter uma percepção diferente em relação às suas idealizações. Ela entendeu que as mesmas estão presas em um ambiente marcado por dor e sofrimento. Preocupada com a irmã mais nova e ciente de que o futuro não lhe reserva muitas opções, ela decide confrontar a engrenagem violenta que rege a sua família e as mulheres da sua comunidade.

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