É curioso como a A24 tem um jeito muito próprio de nos apresentar ao estranho. Desde O Farol, com sua insanidade claustrofóbica e preto e branco granulado, até o visceral Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, passando pela delicadeza sinistra de A Bruxa e Hereditário, o estúdio parece sempre disposto a caminhar na borda — do risco, do belo, do incomum. E A Lenda de Ochi, seu novo projeto de fantasia que estreia dia 29 de maio, dirigido por Isaiah Saxon, não foge a essa lógica.

Mas o que toca em A Lenda de Ochi não é só a fantasia em si — foi o jeito como ela respira, como se move, como parece molhada o tempo todo. Há uma umidade emocional no filme que escorre pela tela. Boa parte da narrativa se desenrola em um clima chuvoso, cinzento, quase meditativo, que transforma essa fábula mitológica em algo muito mais atmosférico do que pirotécnico. Aqui, não há espaço para batalhas épicas ou magias exuberantes. Tudo é silêncio, floresta e uma beleza que pulsa baixinho.
O coração do filme é Yuri (Helena Zengel), uma jovem marcada por uma criação disfuncional: a mãe ausente, emocionalmente corroída por um casamento turbulento; o pai, perdido entre delírios e teorias. É nesse ambiente que ela cresce, até que encontra — ferido e sozinho — um filhote da criatura mitológica que sua vila aprendeu a temer: o Ochi. Um animal fofo, de olhos expressivos, modelado com animatrônicos (e não CGI) em um resgate técnico que dá ao filme uma fisicalidade tátil e nostálgica. Sim, a criatura parece real. E mais do que isso: é real. E isso muda tudo.
A decisão de não recorrer ao excesso de computação gráfica não é só estética. É também política, quase. Porque ao rejeitar o visual plástico e genérico das grandes franquias, Saxon nos lembra do poder dos efeitos práticos — daquilo que exige manipulação manual, gente escondida atrás de bonecos, sensibilidade analógica. É um retorno a algo mais orgânico, mais imperfeito, e por isso mesmo mais vivo.
A jornada de Yuri para devolver o filhote ao seu habitat original vira uma espécie de rito de passagem emocional, onde se confronta o medo coletivo que os humanos têm do que não entendem. É sobre isso que o filme fala, no fundo: sobre o medo do diferente. Os Ochi não são caçados porque são ameaçadores — são caçados porque são desconhecidos. E como é comum nas boas fábulas, aqui o desconhecido não é o vilão, é o espelho.
A estética do filme também carrega essa ideia de introspecção. As paisagens são densas, as montanhas romenas onde foi filmado têm presença. Tudo é musgo, pedra molhada, sons abafados. A floresta é quase um personagem. E ao mesmo tempo em que o filme nos entrega imagens de tirar o fôlego, ele nunca deixa a emoção se perder entre o espetáculo. É uma fantasia que fala baixo, mas ecoa longe.
Não espere respostas fáceis. Nem falas explicativas. Boa parte da narrativa é guiada pelo olhar. Pela presença. Pela relação silenciosa entre criatura e menina. Há algo profundamente espiritual nesse laço — quase como se o filme dissesse que, sim, podemos ser salvos pela conexão com aquilo que o mundo tentou ensinar a gente a rejeitar.
A Lenda de Ochi é, em resumo, uma fantasia de chão molhado. Um conto sobre o exílio dos afetos, o abandono dos pais, e o retorno ao que é selvagem. É um filme que desafia o ritmo acelerado do cinema contemporâneo e aposta em pausas, gestos e silêncios como elementos de narrativa. Um respiro. Um sussurro que vira grito para quem souber ouvir.
E se o catálogo da A24 já é conhecido por nos oferecer obras que fogem do previsível — da angústia moderna de Ex Machina à doçura brutal de Aftersun —, A Lenda de Ochi ocupa um lugar especial: o da fantasia que não precisa de dragões nem de mapas para nos lembrar de que, muitas vezes, o mais mágico que existe é o que assusta. E o que assusta pode, às vezes, apenas estar pedindo cuidado.
Confira o trailer:
Direção: Isaiah Saxon
Roteiro: Isaiah Saxon
Elenco: Helena Zengel, Finn Wolfhard, Emily Watson e Finn Wolfhard
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